INSCRUTABILI DEI CONSILIO
Sobre os Males da Sociedade Moderna, suas
Causas e seus Remédios
Carta encíclica do Papa Leão XIII
21 de abril de 1878
CARTA ENCÍCLICA
A todos os Nossos Veneráveis Irmãos Patriarcas, Primazes,
Arcebispos e Bispos do orbe católico, em graça e comunhão com a Sé Apostólica: Sobre
os males da sociedade, suas causas e remédios.
Veneráveis Irmãos, Saudação e Benção Apostólica.
Introdução
1. Apenas elevado, por um impenetrável desígnio de Deus, e sem o merecer, ao
fastígio da Dignidade Apostólica, sentimo-Nos impelido por um vivo desejo e por uma
espécie de necessidade a dirigir-Nos a Vós por carta, não somente para vos manifestar
os sentimentos da Nossa profunda afeição, mas ainda para cumprir junto a Vós, chamados
que fostes a compartilhar a Nossa solicitude, os deveres do cargo que Deus nos confiou,
animando-vos a sustentar conosco os combates dos tempos atuais pela Igreja de Deus e pela
salvação das almas.
I. Os Males da Sociedade
2. Efetivamente, desde os primeiros instantes do Nosso Pontificado, o que se oferece
aos Nossos olhares é o triste espetáculo dos males que de todas as partes acabrunham o
gênero humano: é essa subversão geral das verdades supremas que são como que os
fundamentos em que se apóia o estado da sociedade humana; é essa audácia dos espíritos
que não podem suportar nenhuma autoridade legítima; é essa causa perpétua de
dissensões de onde nascem as querelas intestinas e as guerras cruéis e sangrentas; é o
desprezo das leis que regulam os costumes e protegem a justiça; é a insaciável cupidez
das coisas que passam e o esquecimento das coisas eternas, levados ambos até esse furor
insensato que por toda parte induz tantos infelizes a levarem sobre si mesmos, sem
tremerem, mãos violentas; é a administração inconsiderada da fortuna pública, o
esbanjamento, a malversação, como também a impudência dos que, cometendo as maiores
espertezas, se esforçam por dar-se a aparência de defensores da! pátria, da liberdade e
de todos os direitos; é, enfim, essa espécie de peste mortal que, insinuando-se nos
membros da sociedade humana, não deixa a esta repouso e lhe prepara novas revoluções e
funestas catástrofes.
II. A Causa desses Males
3. Ora, havemo-Nos convencido de que esses males têm a sua principal causa no desprezo
e na rejeição dessa santa e augustíssima Autoridade da Igreja que governa o gênero
humano em nome de Deus, e que é a salvaguarda e o apoio de toda autoridade legítima. Os
inimigos da ordem pública, que perfeitamente o têm compreendido, pensaram que nada era
mais próprio para subverter os fundamentos da sociedade do que atacar sem trégua a
Igreja de Deus, do que torná-la odiosa e odiável por meio de vergonhosas calúnias,
representando-a como inimiga da verdadeira civilização, do que enfraquecer-lhe a
autoridade e a força por meio de feridas incessantemente renovadas, e do que derrubar o
poder supremo do Pontífice romano, que é neste mundo o guarda e o defensor das regras
eternas e imutáveis do bem e do justo. Daí, pois, saíram essas leis subversivas da
divina constituição da Igreja Católica, leis cuja promulgação na maioria dos países
temos de deplorar; daí promanaram o desprezo do poder e! spiritual, e os entraves opostos
ao exercício do ministério eclesiástico, e a dispersão das Ordens religiosas, e o
confisco dos bens que serviam para sustentar os ministros da Igreja e os pobres; daí,
ainda, o resultado de haverem sido subtraídas à salutar direção da Igreja as
instituições públicas consagradas à caridade e à beneficência; daí essa liberdade
desenfreada de ensinar e de publicar tudo o que é mal, ao passo que, contrariamente, de
toda maneira se viola e se oprime o direito da Igreja à instrução e à educação da
juventude. E outro não foi o fim que os homens se propuseram apoderando-se do Principado
temporal que a Divina Providência havia longos séculos concedera ao Pontífice romano
para que este livremente e sem peias pudesse, para a salvação eterna dos povos, usar do
poder que Jesus Cristo lhe conferiu.
III. Remédios para os Males
4. Se relembramos, Veneráveis Irmãos, esses funestos e inúmeros males, não é para
aumentar a tristeza que por si mesmo faz nascer em Vós tão deplorável estado de coisas;
mas é por compreendermos que, à vista disso, reconhecereis qual é a gravidade da
situação que reclama o Nosso ministério e o Nosso zelo, e com que solicitude devemos,
nestes tempos inditosos, trabalhar para defender e garantir com todas as Nossas forças a
Igreja de Cristo e a dignidade da Sé Apostólica atacada por tantas calúnias.
Caridade Fraterna.
5. Bem claro e evidente é, Veneráveis Irmãos, que à causa da civilização faltam
fundamentos sólidos se ela não se apóia nos princípios eternos da verdade e nas leis
imutáveis do direito e da justiça, se um amor sincero não une entre si as vontades dos
homens e não regula felizmente a distinção e os motivos dos seus deveres mútuos. Ora,
quem ousaria negá-lo? Não foi a Igreja quem, pregando o Evangelho entre as nações, fez
brilhar a luz da verdade no meio dos povos selvagens e imbuídos de superstições
vergonhosas, e quem os reconduziu ao conhecimento do divino Autor de todas as coisas e ao
respeito de si mesmos? Não foi a Igreja quem, fazendo desaparecer a calamidade da
escravidão, revocou os homens à dignidade da sua nobilíssima natureza? Não foi ela
quem, desfraldando sobre todas as plagas da terra o estandarte da Redenção, atraindo a
si as ciências e as artes ou cobrindo-as com a sua proteção, por suas excelentes
instituições de caridade, onde todas as misérias acham alív! io, por suas fundações
e pelos depósitos cuja guarda aceitou, em toda parte civilizou nos seus costumes privados
e públicos o gênero humano, reergueu-o da sua miséria e formou-o, com toda sorte de
desvelos, para um gênero de vida conforme à dignidade e à esperança humanas? E agora,
se um homem de espírito são comparar a época em que vivemos, tão hostil à Religião e
à Igreja de Jesus Cristo, com aqueles tempos tão felizes em que a Igreja era honrada
pelos povos como uma Mãe, convencer-se-á inteiramente de que a nossa época cheia de
perturbações e destruições se precipita direitinho e rapidamente para a sua perda, e
que aqueles tempos foram tanto mais florescentes em excelentes instituições, em
tranqüilidade da vida, em riqueza e em prosperidade, quanto mais submissos ao governo da
Igreja e quanto mais observantes das suas leis se mostraram os povos. E, se os bens
numerosos que acabamos de relembrar e que deveram o seu nascimento ao ministério da
Igreja e à sua influência salu! tar, são verdadeiramente obras e glórias da
civilização humana, muitíssimo longe está, pois, que a Igreja de Jesus Cristo abomine
a civilização e a repila, visto ser a si, pelo contrário, que ela crê caber
inteiramente a honra de lhe haver sido a nutriz, a mestra e a mãe.
6. Bem mais: essa espécie de civilização que, ao contrário, repugna às santas
doutrinas e às leis da Igreja, não passa de uma falsa civilização, e deve ser
considerada como um vão nome sem realidade. É esta uma verdade de que nos fornecem prova
manifesta esses povos que não viram brilhar a luz do Evangelho; na vida deles podem-se
ter vislumbrado algumas falsas aparências de educação mais cultivada, porém os
verdadeiros e sólidos bens da civilização não prosperariam neles.
Respeito à autoridade da Igreja.
7. Com efeito, não se deve considerar como civilização perfeita a que consiste em
desprezar audaciosamente todo poder legítimo; e não se deve saudar com o nome de
liberdade a que tem por cortejo vergonhoso e miserável a propagação desenfreada dos
erros, o livre saciamento das cupidezes perversas, a impunidade dos crimes e dos
malfeitores e a opressão dos melhores cidadãos de toda classe. Esses são princípios
errôneos, perversos e falsos; não poderiam, pois, certamente ter força para
aperfeiçoar a natureza humana e fazê-la prosperar, pois o pecado torna os homens
miseráveis (Prov 14, 34); pelo contrário, absolutamente inevitável se torna que,
após haverem corrompido as mentes e os corações, pelo seu próprio peso esses
princípios lançam os povos em toda sorte de desgraças, que subvertem toda ordem
legítima e conduzem assim, mais cedo ou mais tarde, a situação e a tranqüilidade
pública à sua última perda.
8. Ao contrário, se contemplarmos as obras do Pontificado Romano, que pode haver de
mais iníquo do que negar quanto os Pontífices Romanos têm nobremente e bem merecido de
toda a sociedade civil? Nossos predecessores, com efeito, querendo prover à felicidade
dos povos, empreenderam lutas de todo gênero, suportaram rudes fadigas e nunca hesitaram
em se expor a ásperas dificuldades; de olhos fitos no céu, não abaixaram a fronte ante
as ameaças dos maus, nem cometeram a baixeza de se deixarem desviar do seu dever, fosse
pelas lisonjas, fosse pelas promessas. Foi esta Sé Apostólica quem apanhou os restos da
antiga sociedade destruída e os reuniu juntos. Ela foi também o facho amigo que iluminou
a civilização dos tempos cristãos; a âncora de salvação no meio das mais terríveis
tempestades que tenham agitado a raça humana; o vínculo sagrado da concórdia que une
entre si nações afastadas e costumes diversos; ela foi enfim o centro comum onde se
vinha buscar tanto a doutrina da fé ! e da religião quanto os auspícios de paz e os
conselhos dos atos a cumprir. Que mais? É uma glória dos Pontífices Romanos a de se
haverem sempre e sem trégua oposto como uma muralha e um baluarte a que a sociedade
humana tornasse a cair na superstição e na antiga barbárie.
9. Mas, oxalá que essa autoridade salutar nunca tivesse sido desprezada ou repudiada!
Não teria então o poder civil perdido essa auréola augusta e sagrada que o distinguia,
que a religião lhe dera, e que é só o que torna o estado de obediência nobre e digno
do homem; não se teriam visto atear-se tantas sedições e guerras que foram a causa
funesta de calamidades e morticínios; e tantos reinos, outrora tão florescentes,
tombados hoje do fastígio oda prosperidade, não estariam esmagados sob o peso de toda
sorte de miséria. Temos ainda um exemplo das desgraças acarretadas pelo repúdio da
autoridade da Igreja nos povos orientais que, quebrando os laços dulcíssimos que os
uniam a esta Sé Apostólica, perderam o esplendor da sua antiga reputação, a glória
das ciências e das letras e a dignidade do seu império.
10. Ora, esses admiráveis benefícios que a Sé Apostólica derramou sobre todas as
plagas da terra, e de que fazem fé os mais ilustres monumentos de todos os tempos, foram
especialmente sentidos por esta terra da Itália que tirou do Pontificado Romano frutos
tanto mais abundantes quanto, em razão da sua situação, se achava ela mais próxima
dele. É com efeito, aos Pontífices Romanos que a Itália deve reconhecer-se devedora da
glória sólida e da grandeza com que brilhou no meio das outras nações. A autoridade e
os desvelos paternais deles várias vezes a protegeram contra os vivos ataques dos
inimigos, e foi deles que ela recebeu o alivio e o socorro necessário para que a fé
católica fosse sempre integralmente conservada no coração dos Italianos.
11. Estes méritos dos Nossos predecessores, para não citar outros, são-Nos atestados
sobretudo pela história dos tempos de S. Leão Magno, de Alexandre III, de Inocêncio
III, de S. Pio V, de outros Pontífices, pelos cuidados e sob os auspícios dos quais a
Itália escapou à última destruição de que estava ameaçada pelos bárbaros, conservou
intacta a antiga fé, e, no meio das trevas e das barbarias de uma época mais grosseira,
desenvolveu a luz das ciências e o esplendor das artes, e as conservou florescentes.
São-Nos eles atestados ainda por esta santa cidade, sede dos Pontífices, a qual deles
tirou esta grande vantagem não somente de ser a mais forte cidadela da fé, mas ainda de
haver granjeado a admiração e o respeito do mundo inteiro, tornando-se o asilo das belas
artes e a mansão da sabedoria. E, como a grandeza destas coisas foi transmitida à
lembrança eterna da posteridade pelos monumentos da história, fácil é compreender que
só por uma vontade hostil e por uma indigna ! calúnia, empregadas ambas em enganar os
homens, é que se tem feito acreditar, pela palavra e pelos escritos, ter sido esta Sé
Apostólica um obstáculo à civilização dos povos e à prosperidade da Itália.
Restauração do Poder Temporal dos Papas.
12. Se, pois, todas as esperanças da Itália e do mundo inteiro estão colocadas nessa
força, tão favorável ao bem e à unidade de todos, de que goza a autoridade da Sé
Apostólica, e nesse vínculo tão estreito que une todos os fiéis ao Pontífice Romano,
compreendemos que nada devemos ter mais a peito do que conservar religiosamente intacta a
dignidade da Cátedra Romana e estreitar cada vez mais a união dos membros com a cabeça
e a dos filhos com seu Pai.
13. É por isso que, para manter antes de tudo, tanto
quanto está em Nosso poder, os direitos da liberdade desta Santa Sé, jamais
cessaremos de combater para conservar à nossa autoridade a obediência que
lhe é devida, para afastar os obstáculos que impedem a plena liberdade do
Nosso ministério e do Nosso poder, e para conseguir o retorno àquele estado
de coisas em que os desígnios da Divina Sabedoria haviam outrora colocado os
Pontífices Romanos. E não é, Veneráveis Irmãos, nem por espírito de ambição,
nem por desejo de domínio que somos impelidos a pedir esse retorno; mas sim
pelos deveres do Nosso cargo e pelos compromissos religiosos do juramento
que Nos liga: ademais, somos a isso impelido não somente pela consideração
de que esse principado Nos é necessário para defender e conservar a plena
liberdade do poder espiritual, como ainda porque tem sido plenamente
verificado que, quando se trata do Principado temporal da Sé Apostólica, é a
própria causa do bem público e da salvação de toda a sociedade humana que está
em questão. Daí se segue que, em razão do dever do Nosso cargo, que nos obriga a
defender os direitos da Santa Igreja, não Nos podemos dispensar de renovar e de continuar
nesta carta as declarações e os protestos que o Nosso predecessor Pio IX, de santa
memória, várias vezes formulou e renovou, tanto contra a ocupação do poder temporal
como contra a violação dos direitos da Igreja Romana. Volvemos ao mesmo tempo Nossa voz
para os príncipes e para os chefes supremos dos povos e instantemente lhes suplicamos,
pelo augusto nome do Deus poderosíssimo, não repelirem o auxilio que a Igreja lhes
oferece em momento tão necessário, cercarem amistosamente, como de desvelos unânimes,
esta fonte de autoridade e de salvação, e a ela se prenderem cada vez mais pelos laços
de um amor estreito e de um profundo respeito. Faça o céu que eles reconheçam a verdade
de tudo o que havemos dito, e se persuadam de que a doutrina de Jesus Cristo, como dizia!
Santo Agostinho, é a grande salvação do país quando as pessoas conformam a ela seus
atos (Ep. 138)! Possam eles compreender que a sua segurança e tranqüilidade, tanto
como a segurança e a tranqüilidade públicas, dependem da conservação da Igreja e da
obediência que lhes prestarem, e aplicar então todos os seus pensamentos e todos os seus
cuidados a fazer desaparecer os males de que a Igreja e seu Chefe visível são afligidos!
Possa daí, enfim, resultar que os povos que eles governam entrem na trilha da justiça e
da paz, e gozem de uma era feliz de prosperidade e de glória.
Fidelidade à Santa Sé Apostólica.
14. Querendo também, em seguida, manter cada vez mais estreita a concórdia entre todo
o rebanho católico e seu Pastor supremo, com afeto particular aqui Vos concitamos,
Veneráveis Irmãos, e vos exortamos calorosamente a, pelo Vosso zelo sacerdotal e pela
Vossa vigilância pastoral, inflamardes do amor da religião os fiéis que Vos são
confiados, a fim de que eles se prendam cada vez mais estreitamente a esta Cátedra de
verdade e de justiça, a fim de que aceitem todos a doutrina dela com a mais profunda
submissão de espírito e de vontade, e a fim de que rejeitem, enfim, absolutamente todas
as opiniões, mesmo as mais difundidas, que souberem ser contrárias aos ensinamentos da
Igreja. Sobre este assunto, os Pontífices Romanos Nossos predecessores, e em particular
Pio IX, de santa memória, sobretudo no concilio do Vaticano, tendo incessantemente diante
dos olhos estas palavras de S. Paulo: Vede que ninguém vos engane por meio da
filosofia ou de um vão artifício que seja segundo a tradição dos homens ou segundo
os elementos do mundo, e não segundo Jesus Cristo (Col 2, 8), todas as vezes que se
tornou necessário não descuraram reprovar os erros que irrompiam e fulminá-los com as
censuras apostólicas. Nós também, seguindo as pegadas dos Nossos predecessores,
confirmamos e renovamos todas essas condenações do alto desta Sé Apostólica de
verdade, e ao mesmo tempo pedimos vivamente ao Pai das luzes faça com que todos os
fiéis, inteiramente unidos num mesmo sentimento e numa mesma crença, pensem e falem
absolutamente como Nós. O Vosso dever, Veneráveis Irmãos, é empregardes os Vossos
desvelos assíduos em espalhar ao longe no campo do Senhor a semente das celestes
doutrinas, e em fazer penetrar oportunamente na mente dos fiéis os princípios da fé
católica, para que lancem nela profundas raízes e nela se conservem ao abrigo do
contágio dos erros. Quanto maiores esforços fazem os inimigos da religião para ensinar
aos homens sem instrução, e sobretudo ! aos jovens, princípios que lhes obscurecem a
mente e corrompem o coração, tanto mais é precioso trabalhar ardentemente não só para
fazer prosperar um hábil e sólido método de educação, mas sobretudo para não se
apartar da fé católica, no ensino das letras e das ciências e em particular da
filosofia, da qual depende em grande parte a verdadeira direção das outras ciências, e
que, longe de tender a derrubar a divina revelação, pelo contrário, se alegra de lhe
aplanar o caminho e de defendê-la contra os seus assaltantes, como pelo exemplo e pelos
escritos no-lo ensinaram o grande Agostinho e o Doutor Angélico, e todos os demais
mestres da sabedoria cristã.
Reforma do Lar cristão.
15. Todavia, necessário se torna que, para ser uma garantia da verdadeira fé e da
religião, e uma salvaguarda da integridade dos costumes, essa excelente educação da
juventude comece no próprio interior da família, dessa família que, infelizmente
perturbada nos tempos atuais, só pode recuperar a sua liberdade por essas leis que o
próprio divino Autor lhe fixou ao instituí-la na Igreja. Jesus Cristo, com efeito,
elevando à dignidade de sacramento a aliança do matrimônio, que Ele quis fazer servir a
simbolizar a sua união com a Igreja, não somente tornou mais santa a ligação dos
esposos, como também preparou tanto aos pais como aos filhos meios eficacíssimos
próprios para lhes facilitar, pela observância dos seus deveres recíprocos, a
obtenção da felicidade temporal e eterna.
16. Infelizmente, depois que leis ímpias e sem nenhum respeito pela santidade desse
grande sacramento o rebaixaram à mesma categoria dos contratos civis, tem sucedido que,
profanando a dignidade do matrimônio cristão, cidadãos tenham adotado o concubinato
legal ao invés das núpcias religiosas; esposos têm descurado os deveres da fé que se
haviam prometido, filhos têm recusado aos pais a obediência e o respeito que lhes
deviam, os laços da caridade doméstica têm-se afrouxado, e, o que é bem triste exemplo
e mui prejudicial aos costumes públicos, a um amor insensato muitíssimas vezes têm
sucedido separações funestas e perniciosas. Impossível é, Veneráveis Irmãos, que a
vista dessa miséria e dessas calamidades lamentáveis não excite o Vosso zelo e não nos
induza a, com cuidado e sem tréguas, exortar os fiéis confiados à Vossa guarda a
prestarem ouvido dócil aos ensinamentos que se relacionam com a santidade do matrimônio
cristão, e a obedecerem às leis da Igreja que regulam o! s deveres dos esposos e dos
filhos.
Reforma dos costumes públicos.
17. Assim é que conseguireis essa reforma tão desejável dos costumes e do modo de
viver de cada homem em particular, porquanto, assim como de um tronco apodrecido não
podem brotar senão galhos estragados e frutos pecos, assim também por um triste
contágio essa funesta chaga que corrompe as famílias estende-se a todos os cidadãos e
torna-se um mal e um defeito comum. Ao contrário, uma vez moldada a sociedade doméstica
a uma forma de vida cristã, cada membro se acostumará pouco a pouco a amar a religião e
a piedade, a detestar as falsas e perniciosas doutrinas, a praticar a virtude, a obedecer
aos seus superiores e a reprimir essa procura insaciável do interesse puramente privado
que tão profundamente abaixa e enerva a natureza humana. Um bom meio para realizar este
objetivo será dirigir e incentivar essas pias associações que, mormente nestes tempos
de agora, têm sido mais particularmente instituídas para favorecer os interesses
católicos.
18. Em verdade, Veneráveis Irmãos, grandes coisas, coisas mesmo superiores às
forças humanas são as que Nós assim abraçamos com os Nossos votos e com as Nossas
esperanças; mas, como Deus fez as nações do mundo curáveis e fundou a sua Igreja para
a salvação dos povos, prometendo assisti-la até à consumação dos séculos, temos a
firme confiança de que o gênero humano, ferido por tantos males e calamidades, graças
aos Vossos esforços acabará buscando a salvação e a prosperidade na submissão à
Igreja e no magistério infalível desta Cátedra Apostólica.
Conclusão
Regozijo pela união e concórdia entre
Bispos.
19. E agora, Veneráveis Irmãos, antes de encerrarmos esta carta, sentimos a
necessidade de participar-vos a Nossa alegria ao vermos a união admirável e a concórdia
que reinam entre Vós e Vos unem tão perfeitamente a esta Sé Apostólica, e em verdade
ficamos persuadidos de que essa perfeita união é não somente um baluarte inexpugnável
contra os assaltos dos inimigos, mas é ainda um presságio feliz e próspero de tempos
melhores para a Igreja; ela proporciona um grande alívio à Nossa fraqueza, e levanta,
assim, de maneira feliz o Nosso espírito, ajudando-Nos a sustentar com ardor, no difícil
múnus que havemos recebido, todas as fadigas e todos os combates pela Igreja de Deus.
Agradecimento pelas declarações de amor e
obediência.
20. Também não podemos separar dessas causas de esperanças e de alegria que acabamos
de Vos manifestar, essas declarações de amor e de obediência que, nestes primórdios do
Nosso pontificado, Vós, Veneráveis Irmãos, haveis formulado à Nossa humilde pessoa, e
que também Nos têm sido feitas por tantos eclesiásticos e fiéis, provando assim pelas
cartas enviadas, pelas larguezas recolhidas, pelas peregrinações realizadas e por tantas
outras provas de piedade, que essa devoção e essa caridade que eles não haviam cessado
de testemunhar ao Nosso digno Predecessor permaneceram tão firmes, tão estáveis e tão
íntegras, que se não arrefeceram à vinda de um sucessor tão pouco digno dessa
herança. À vista de testemunhos tão esplêndidos da fé católica, devemos humildemente
confessar que o Senhor é bom e benevolente, e a Vós, Veneráveis Irmãos, e a todos
esses filhos queridos de quem as havemos recebido, exprimimos os numerosos e profundos
sentimentos de gratidão que inundam o nosso coração, cheios de confiança de que, na
angústia e nas dificuldades dos tempos atuais, o Vosso zelo e o Vosso amor, bem como os
dos fiéis, jamais Nos faltarão. Tão pouco duvidamos de que esses notáveis exemplos de
piedade filial e de virtude cristã contribuam poderosamente para tocar o coração do
Deus misericordiosíssimo, e para o fazer deitar um olhar de benevolência sobre o seu
rebanho e conceder à Igreja a paz e a vitória. E, como estamos convencido de que essa
paz e essa vitória Nos serão mais pronta e mais facilmente concedidas se os fiéis
dirigirem constantemente a Deus preces e votos para lhas pedir, vivamente Vos exortamos,
Veneráveis Irmãos, a excitardes com esse fim o zelo dos fiéis, concitando-os a
empregarem como mediadora junto a Deus a Imaculada Rainha dos Céus, e como intercessores
S. José, padroeiro celeste da Igreja, e os santos apóstolos Pedro e Paulo, a cujo
poderoso patrocínio recomendamos a nossa humilde pessoa, todas as ordens da hierarquia
eclesiástica, e t! odo o rebanho do Senhor.
Votos e bênção Apostólica.
21. Finalmente, desejamos que estes dias em que festejamos o solene aniversário da
ressurreição de Jesus Cristo sejam, para Vós e para todo o rebanho do Senhor, felizes,
salutares e cheios de santa alegria, pedindo a Deus, que é tão bom, apague as faltas que
havemos cometido e nos faça misericordiosamente remissão da pena que elas Nos mereceram,
e isso pela virtude desse Sangue do Cordeiro imaculado que apague a sentença lavrada
contra nós (Col 2, 14).
22. A graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, a caridade de Deus e a comunicação do
Espírito Santo sejam com todos vós (2 Cor 13, 13), Veneráveis Irmãos, e é de todo
coração que, a Vós e a cada um em particular, bem como aos Nossos caros filhos o clero
e os fiéis de vossas Igrejas, concedemos a bênção apostólica como penhor da Nossa
especial benevolência e como presságio da proteção celeste.
Dado em Roma, junto a S. Pedro, no dia solene de Páscoa, a 21 de abril do ano de 1878,
primeiro ano do Nosso Pontificado.
LEÃO XIII, PAPA